Salve, salve o povo guarani
Texto extraído da revista Caros Amigos nº 108.
“Entre os dias 5 e 10 de fevereiro de 1756 foram escritas algumas das páginas mais bonitas da história do nosso povo. Nesse período se travaram batalhas que definiram a propriedade do território, que hoje é o Rio Grande do Sul. De um lado, dois exércitos fortemente armados e unidos, do império espanhol e do império português, abençoados pelo império do Vaticano, que os acompanhava. Do outro, o povo guarani, que vivia sossegadamente organizado em sete povos, defendendo sua cultura, sua forma de viver e seu território. Duzentos e cinqüenta anos depois, nos reunimos durante quatro dias, mais de 10.000 pessoas, a maioria jovens, militantes sociais da cidade e do campo, de todo o sul do Brasil. E, entre nós, 1.500 representantes do povo guarani, vindos de três países, fora o Brasil: Argentina, Paraguai e Bolívia. Formamos um acampamento em São Gabriel, Rio Grande do Sul, para reverenciar o povo guarani e o martírio do seu líder Sepé Tiaraju.
Mas o que fomos celebrar em São Gabriel, se houve uma derrota, um massacre do povo guarani?
Para entender a importância do nosso acampamento e das homenagens aos derrotados, vamos recorrer à história. Os povos guaranis, charruas, minuanos e tapes habitam, desde tempos imemoriáveis, o território hoje conhecido como Rio Grande do Sul (segundo estudos antropológicos, há provas da presença humana na região das missões há 12.000 anos). E entre os anos de 1600 e 1756 floresceu uma civilização extremamente progressista na região noroeste do território gaúcho, o que compreende desde o norte do Uruguai até o noroeste do Rio Grande do Sul, nas margens do rio Uruguai, e ultrapassando o rio, onde hoje é a província de Missiones, na Argentina e parte do sul do Paraguai. Nesse território se concentraram os povos guaranis e seus aliados charruas. Organizaram uma forma de vida social impressionante. Foi uma aliança entre o saber milenar de seu povo, com o enciclopedismo europeu que veio com a Companhia de Jesus. Nestes 150 anos desenvolveram 33 cidades, que chegaram a ter entre 5.000 e 15.000 habitantes cada uma. Toda terra era de uso e posse coletivos. O trabalho era organizado de duas formas. Uma parte era de para toda a comunidade e realizado de forma coletiva, e uma pequena parte do tempo podia ser dedicado a afazeres domésticos e cultivos familiares. Não havia fome. Não havia desigualdade social. Não havia pobres e ricos. Todos eram iguais. Existiam já naquela época, pasmem, escolas e, segundo os registros, todas as crianças deviam ir para a escola a partir dos 6 anos (imaginemos que a primeira escola pública no Brasil foi fundada bem depois, por dom Pedro II, em 1840). Nesse sistema econômico, chegaram a ter mais de 4 milhões de cabeças de gado, originalmente trazidos pelos jesuítas e adaptados ao pampa gaúcho. Havia fartura de alimentos. E grande parte do tempo as pessoas dedicavam a atividades culturais, festas, cantorias e intercâmbio. No povoado de São Miguel das Missões registra-se que havia uma orquestra de crianças e adolescentes que tocavam inclusive violino. Isso tudo, lá pelos idos de 1700. E muitos anos antes da civilização européia, implantaram um regime político que depois ficou conhecido como república. Ou seja, na estrutura de poder dos guaranis, a eleição dos líderes era feita pelo voto de cada habitante, homens e mulheres.
Nesse regime é que em 1751 foi eleito, pelo voto de todos, como uma espécie de prefeito ou cacique de São Miguel, o jovem guerreiro Sepé Tiaraju. Sepé falava e escrevia três idiomas: guarani, latim e espanhol!
Tudo isso era visto com muita desconfiança e ganância pelos impérios da época. Cansados de fazer guerra entre si, e disputar o mercado no nascente capitalismo comercial, o império português e o espanhol realizaram em 1751 o Tratado de Madri, que punha fim as suas disputas de mercado. E, por esse acordo, também trocaram a colônia de Sacramento, hoje Montevidéu, um pequeno povoado sob domínio dos portugueses, por um imenso território guarani, que ia do norte de Montevidéu até Asunción, no Paraguai, como se fosse espanhol. Era guarani.
Na verdade, foi selada uma aliança entre os dois impérios, para impedir que aquela civilização tão rica e que controlava tanto território se consolidasse, fora da influência nascente do capitalismo. Decidiram então que os povos nativos deveriam abolir sua organização social, abandonar seu território, suas casas, suas sete cidades da margem direita do riu Uruguai e passar todos para o oeste do rio. Pois do outro lado do rio seria a Espanha, e do lado de cá, Portugal. Os povos guaranis não aceitaram, apesar das ameaças do Vaticano e da traição da maior parte dos jesuítas que com eles viviam. E resolveram defender seu território e seu modo de viver. Sepé Tiaraju, como autoridade máxima dos sete povos, comandou a resistência, com seus 30.000 guerreiros que, armados apenas de lanças e flechas, tiveram que enfrentar o poder da pólvora e do canhão dos mais poderosos exércitos da época.
A maior parte dos guerreiros foi massacrada, mas eles não se entregaram! Milhares de mulheres e crianças cruzaram o rio Uruguai e foram viver no que atualmente é Missiones e Paraguai. Outros milhares se embrenharam na mata, fugiram, e geraram os que hoje são os remanescentes dos guaranis em todo o sul do país.
Sepé Tiaraju tombou em combate, no dia 7 de fevereiro de 1756, próximo a um riacho, onde se formaria a cidade de São Gabriel. Foi o início do fim. E a batalha derradeira se deu três dias depois nas colinas de Caiboaté, a uns 30 km de São Gabriel. Ali foram massacrados mais de 1.500 guerreiros guaranis, traídos pela ilusão de um acordo de paz. Seus corpos estão lá enterrados, sob a sombra de uma enorme cruz. E ninguém se lembrou de fazer qualquer escavação ou pesquisa sobre eles, até hoje.
Foi assim que o território dos guaranis passou a ser de Portugal e mais tarde se transformou em Rio Grande do Sul. Suas terras foram distribuídas entre os oficiais portugueses, que, além de controlar o novo território, formaram grandes fazendeiros de gado. E nasceu também o latifúndio da fronteira gaúcha, raiz de uma sociedade opressora e desigual até hoje.
Essas batalhas e a figura de Sepé Tiaraju se inserem nas gloriosas lutas de resistência dos povos nativos da América Latina, que enfrentaram com sua coragem e cultura os poderosos impérios. Assim fizeram os incas e seu Tupac Amaru, no Peru. Assim fizeram os quínchuas e seu Tupakatari, na Bolívia, todos no mesmo período histórico de Sepé e seus guaranis.
Fomos a São Gabriel nos abastecer dessa coragem, dessa vontade de defender nosso território, nossa cultura, nosso sonho de uma sociedade mais justa e igualitária. Fomos lá buscar energia nos guerreiros guaranis, que no passado enfrentaram os mesmos impérios. Agora, o império não vem invadindo nosso território com canhões e cavalaria, agora ele vem com seus bancos(comprando até nossos melhores jogadores de futebol para falsas propagandas), vem com seu capital, comprando nossas empresas, nossas terras... vem nos explorar, cobrando por serviços de telefone, de energia elétrica, que nós mesmo montamos e dos quais se apropriaram. Vem com suas mais altas taxas de juros do mundo! Mas o sentido da dominação e da exploração das riquezas é o mesmo. Agora não podem mais contar com parte dos jesuítas na defesa de sua ideologia. Agora invadem com a televisão, com suas mentiras e tonterias. Duzentos e cinqüenta anos depois, a rigor, a luta é a mesma. O povo versus o império do capital.
Talvez seja por isso que nenhum grande jornal, nenhum grande canal de televisão quiseram ir a São Gabriel. Estiveram lá apenas a TV Educativa do Paraná e a Telesur, que pretende ser voz e espaço dos povos da América Latina.
Salve, salve o povo guarani, que sobrevive heróico, resistindo há 250 anos! Resta-nos o consolo de que todos os impérios foram derrotados. E os atuais também serão.”
João pedro Stedile
“Entre os dias 5 e 10 de fevereiro de 1756 foram escritas algumas das páginas mais bonitas da história do nosso povo. Nesse período se travaram batalhas que definiram a propriedade do território, que hoje é o Rio Grande do Sul. De um lado, dois exércitos fortemente armados e unidos, do império espanhol e do império português, abençoados pelo império do Vaticano, que os acompanhava. Do outro, o povo guarani, que vivia sossegadamente organizado em sete povos, defendendo sua cultura, sua forma de viver e seu território. Duzentos e cinqüenta anos depois, nos reunimos durante quatro dias, mais de 10.000 pessoas, a maioria jovens, militantes sociais da cidade e do campo, de todo o sul do Brasil. E, entre nós, 1.500 representantes do povo guarani, vindos de três países, fora o Brasil: Argentina, Paraguai e Bolívia. Formamos um acampamento em São Gabriel, Rio Grande do Sul, para reverenciar o povo guarani e o martírio do seu líder Sepé Tiaraju.
Mas o que fomos celebrar em São Gabriel, se houve uma derrota, um massacre do povo guarani?
Para entender a importância do nosso acampamento e das homenagens aos derrotados, vamos recorrer à história. Os povos guaranis, charruas, minuanos e tapes habitam, desde tempos imemoriáveis, o território hoje conhecido como Rio Grande do Sul (segundo estudos antropológicos, há provas da presença humana na região das missões há 12.000 anos). E entre os anos de 1600 e 1756 floresceu uma civilização extremamente progressista na região noroeste do território gaúcho, o que compreende desde o norte do Uruguai até o noroeste do Rio Grande do Sul, nas margens do rio Uruguai, e ultrapassando o rio, onde hoje é a província de Missiones, na Argentina e parte do sul do Paraguai. Nesse território se concentraram os povos guaranis e seus aliados charruas. Organizaram uma forma de vida social impressionante. Foi uma aliança entre o saber milenar de seu povo, com o enciclopedismo europeu que veio com a Companhia de Jesus. Nestes 150 anos desenvolveram 33 cidades, que chegaram a ter entre 5.000 e 15.000 habitantes cada uma. Toda terra era de uso e posse coletivos. O trabalho era organizado de duas formas. Uma parte era de para toda a comunidade e realizado de forma coletiva, e uma pequena parte do tempo podia ser dedicado a afazeres domésticos e cultivos familiares. Não havia fome. Não havia desigualdade social. Não havia pobres e ricos. Todos eram iguais. Existiam já naquela época, pasmem, escolas e, segundo os registros, todas as crianças deviam ir para a escola a partir dos 6 anos (imaginemos que a primeira escola pública no Brasil foi fundada bem depois, por dom Pedro II, em 1840). Nesse sistema econômico, chegaram a ter mais de 4 milhões de cabeças de gado, originalmente trazidos pelos jesuítas e adaptados ao pampa gaúcho. Havia fartura de alimentos. E grande parte do tempo as pessoas dedicavam a atividades culturais, festas, cantorias e intercâmbio. No povoado de São Miguel das Missões registra-se que havia uma orquestra de crianças e adolescentes que tocavam inclusive violino. Isso tudo, lá pelos idos de 1700. E muitos anos antes da civilização européia, implantaram um regime político que depois ficou conhecido como república. Ou seja, na estrutura de poder dos guaranis, a eleição dos líderes era feita pelo voto de cada habitante, homens e mulheres.
Nesse regime é que em 1751 foi eleito, pelo voto de todos, como uma espécie de prefeito ou cacique de São Miguel, o jovem guerreiro Sepé Tiaraju. Sepé falava e escrevia três idiomas: guarani, latim e espanhol!
Tudo isso era visto com muita desconfiança e ganância pelos impérios da época. Cansados de fazer guerra entre si, e disputar o mercado no nascente capitalismo comercial, o império português e o espanhol realizaram em 1751 o Tratado de Madri, que punha fim as suas disputas de mercado. E, por esse acordo, também trocaram a colônia de Sacramento, hoje Montevidéu, um pequeno povoado sob domínio dos portugueses, por um imenso território guarani, que ia do norte de Montevidéu até Asunción, no Paraguai, como se fosse espanhol. Era guarani.
Na verdade, foi selada uma aliança entre os dois impérios, para impedir que aquela civilização tão rica e que controlava tanto território se consolidasse, fora da influência nascente do capitalismo. Decidiram então que os povos nativos deveriam abolir sua organização social, abandonar seu território, suas casas, suas sete cidades da margem direita do riu Uruguai e passar todos para o oeste do rio. Pois do outro lado do rio seria a Espanha, e do lado de cá, Portugal. Os povos guaranis não aceitaram, apesar das ameaças do Vaticano e da traição da maior parte dos jesuítas que com eles viviam. E resolveram defender seu território e seu modo de viver. Sepé Tiaraju, como autoridade máxima dos sete povos, comandou a resistência, com seus 30.000 guerreiros que, armados apenas de lanças e flechas, tiveram que enfrentar o poder da pólvora e do canhão dos mais poderosos exércitos da época.
A maior parte dos guerreiros foi massacrada, mas eles não se entregaram! Milhares de mulheres e crianças cruzaram o rio Uruguai e foram viver no que atualmente é Missiones e Paraguai. Outros milhares se embrenharam na mata, fugiram, e geraram os que hoje são os remanescentes dos guaranis em todo o sul do país.
Sepé Tiaraju tombou em combate, no dia 7 de fevereiro de 1756, próximo a um riacho, onde se formaria a cidade de São Gabriel. Foi o início do fim. E a batalha derradeira se deu três dias depois nas colinas de Caiboaté, a uns 30 km de São Gabriel. Ali foram massacrados mais de 1.500 guerreiros guaranis, traídos pela ilusão de um acordo de paz. Seus corpos estão lá enterrados, sob a sombra de uma enorme cruz. E ninguém se lembrou de fazer qualquer escavação ou pesquisa sobre eles, até hoje.
Foi assim que o território dos guaranis passou a ser de Portugal e mais tarde se transformou em Rio Grande do Sul. Suas terras foram distribuídas entre os oficiais portugueses, que, além de controlar o novo território, formaram grandes fazendeiros de gado. E nasceu também o latifúndio da fronteira gaúcha, raiz de uma sociedade opressora e desigual até hoje.
Essas batalhas e a figura de Sepé Tiaraju se inserem nas gloriosas lutas de resistência dos povos nativos da América Latina, que enfrentaram com sua coragem e cultura os poderosos impérios. Assim fizeram os incas e seu Tupac Amaru, no Peru. Assim fizeram os quínchuas e seu Tupakatari, na Bolívia, todos no mesmo período histórico de Sepé e seus guaranis.
Fomos a São Gabriel nos abastecer dessa coragem, dessa vontade de defender nosso território, nossa cultura, nosso sonho de uma sociedade mais justa e igualitária. Fomos lá buscar energia nos guerreiros guaranis, que no passado enfrentaram os mesmos impérios. Agora, o império não vem invadindo nosso território com canhões e cavalaria, agora ele vem com seus bancos(comprando até nossos melhores jogadores de futebol para falsas propagandas), vem com seu capital, comprando nossas empresas, nossas terras... vem nos explorar, cobrando por serviços de telefone, de energia elétrica, que nós mesmo montamos e dos quais se apropriaram. Vem com suas mais altas taxas de juros do mundo! Mas o sentido da dominação e da exploração das riquezas é o mesmo. Agora não podem mais contar com parte dos jesuítas na defesa de sua ideologia. Agora invadem com a televisão, com suas mentiras e tonterias. Duzentos e cinqüenta anos depois, a rigor, a luta é a mesma. O povo versus o império do capital.
Talvez seja por isso que nenhum grande jornal, nenhum grande canal de televisão quiseram ir a São Gabriel. Estiveram lá apenas a TV Educativa do Paraná e a Telesur, que pretende ser voz e espaço dos povos da América Latina.
Salve, salve o povo guarani, que sobrevive heróico, resistindo há 250 anos! Resta-nos o consolo de que todos os impérios foram derrotados. E os atuais também serão.”
João pedro Stedile
Notas:
1. O Tratado de Madri foi assinado entre o império espanhol e o português em 15 de janeiro de 1750.
2. Em 1745 o papa emitiu a Bula Solicitudo Omnnium, onde condena o modelo de vida das missões guaranis.
3. Os povos guaranis habitavam um território aproximado de 400 mil km2, desde Assunção até o norte de Montevidéu, onde se estima que em 1750 viviam 600.000 pessoas, em mais de 70 povoações, sendo 33 na região hoje conhecida como Missões.
João Pedro Stedile é dirigente do MST e da Via Campesina
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